sexta-feira, 19 de março de 2021

Relatos de uma vida acadêmica desastrosa - Parte IV

O prazer único dos trabalhos práticos

Para a maioria dos estudantes universitários, os trabalhos são uma parte terrível do curso, mas há quem se apaixone pela prática no jornalismo.

Primeira pauta externa, encontro mensal de antigos no Parque da Luz. Foto: Renato Oliveira.

Se a mudança de instituição trouxeram desafios desagradáveis, os trabalhos práticos - terror da maioria dos estudantes de jornalismo - eram fonte de um enorme prazer. No primeiro semestre, trabalhei com pessoas que não tinham comprometimento com as pautas, nem mesmo com os trabalhos teóricos, simples, porém maçantes. Por vezes tive que tomar a atitude, fazer a parte de outros membros, apenas pensando em entregar algo satisfatório. Trabalhar em equipe não é uma tarefa simples, requer respeito, comprometimento e uma boa dose sinergia. 

No segundo semestre minha sorte começou a mudar, foi a época que me aproximei mais das meninas que comigo formariam o trio mais conhecido pelos professores nos anos seguintes, primeiro me aproximei de Debora, não demorou muito tempo e estávamos fazendo um trabalho com Vinícius, do qual falarei mais adiante. Mas a aproximação de Angela foi a peça fundamental. Trabalhar com pessoas criativas e inovadoras é fantástico.

No final do primeiro ano de faculdade, nossa relação já havia rompido os muros e as grades do Campus, estava além inclusive da cerveja pós provas ou pós aula, era o início de uma amizade que levou inclusive a decisão precoce pelo tema do TCC, mas é um assunto do qual irei tratar na quinta e última parte desses relatos. 

Um início iluminado e repleto de história e nostalgia

Meu primeiro trabalho externo era de pauta livre, bastava entregar a proposta, um breve histórico do local escolhido e a relevância jornalística.  Na ocasião, uma experiência introdutória ao jornalismo literário proposta por Marcello Rollemberg, o qual citei diversas vezes nesta série de textos. Domingo 4 de setembro de 2016, tudo certo para fazer uma cobertura do evento mensal de veículos antigos no Parque da Luz.

Jornalista de primeira viajem, não fui sozinho, aproveitei a ocasião para fazer um dos tantos rolês com Lucas, aquele amigo de longa data que sempre topa qualquer tipo de passeio cultural ou não. Nos encontramos no início da manhã na Estação de Osasco e partimos rumo ao centro histórico de São Paulo. Um dia cinzento em época de campanha eleitoral municipal, mas o clima de forma alguma poderia atrapalhar aquela pauta e, assim foi, com uma ajuda de São Pedro, como diriam os mais religiosos.

A Estação da Luz já é um espetáculo, além de todo o estilo inglês do final do século XIX, a estação abriga o Museu da Língua portuguesa e, em sua fachada principal é possível admirar o Jardim da Luz e a Pinacoteca do Estado. Alguns quarteirões dali, está a também imponente Júlio Prestes, de estilo francês da mesma época e que abriga a Sala São Paulo, a mais aclamada casa de concertos do Brasil. Uma pena um local histórico e cultural ser abandonado pelo poder público e tomado por viciados e traficantes.

Saindo da estação, uma verdadeira confusão de pessoas caminhando por entre carros antigos da década de 1920 e, de um enorme e suntuoso Lincoln Continental verde, no melhor estilo dos anos 70, um carro enorme com toda pompa de um mafioso ou cafetão. Aos poucos a atenção aos carros se mistura com a busca por personagens para a matéria, dois senhores tocando moda de viola no interior do jardim ao lado de uma Kombi encurtada, mais adiante um Fusca rebaixado e um dono comunicativo, foi meu primeiro entrevistado, ainda com muita vergonha, mas consegui cumprir minha função. Mais adiante um senhor me chamou atenção, já na parte do evento dedica às vendas, quadros com desenhos incríveis de carros, aproveite minha afinidade com a arte e logo desenrolei uma entrevista em forma de conversa informal, as melhores na minha opinião.

Próximo da hora de partida, dois rapazes passam conversando em inglês, Lucas prontamente se oferece para ser meu intérprete e ali estava o fechamento da matéria, com um algo a mais. A percepção de um britânico e um espanhol sobre u uma exposição de veículos antigos em uma rua e um parque da cidade era algo fantástico e distante da realidade vivida por eles na Europa, eventos inusitados que apenas nós brasileiros sabemos como organizar. 

Minha segunda experiência em campo, foi uma entrevista ping-pong, perguntas e respostas diretas, nos moldes das páginas amarelas de Veja por exemplo. Não foi um trabalho com bom resultado, pequei muito nos erros de português e de concordância, talvez seja a emoção da entrevistas. Não é todo dia que temos a oportunidade de entrevistar uma pessoa que sobreviveu ao Holocausto, graças a contatos pessoais, entrevistei Nanette Konig, uma experiência incrível.

Os desafios do audiovisual no jornalismo

Os desafios da edição. Foto: Renato Oliveira.

Após a troca de instituição em 2017, os trabalhos ficaram mais elaborados e naturalmente mais práticos. Editoração com a recriação de páginas de revistas, folders e a criação de um infográfico, uma revista-laboratório, embora nunca publicada com relação direta com a disciplina anterior. Mas o maior desafio foi em rádio II, ainda mais para quem não havia cursado a primeira matéria desta mídia. Não bastando o desconhecimento da matéria e de sua dinâmica, fui colocado na função de assistente de direção por uma colega que não fazia ideia do que estava fazendo, no final fiquei sobrecarregado, assumindo também a direção geral e a redação.

A linguagem de rádio é muito diferente da escrita, o texto deve ser fluído e beneficiar a fala, um texto travado ou com palavras rebuscados, não funcionará no dinamismo do rádio. Outro grande desafio era cobrar o deadline, prazo final de entrega dos textos e, organizar as notas seguindo a sua importância, alternando com as falas do estúdio e entradas ao vivo. Um desafio superado. No final do semestre, um programa de entrevista em tempo real, o tema eram os diferentes tipos de família, entre os convidados, Rogério Magalhães, cabelereiro da Gisele Bündchen e, deixo aqui uma singela homenagem ao desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Antônio Carlos Malheiros, sempre envolvido em causas sociais, que faleceu na semana em que este texto está sendo escrito.

O nível subiu naturalmente em telejornalismo, apesar do texto ser parecido com o do rádio, a imagem também fala, portanto, torna-se necessário mais uma vez modificar a forma de escrever. Outro desafio é lidar com a imagem, se ouvir a própria voz causa incomodo à maioria das pessoas, lidar com a própria imagem é um desafio ainda maior. Ler o teleprompter  com naturalidade é um desafio, a entonação da voz, os gestos e claro, o dinamismo, ninguém assiste um programa por muito tempo quando o apresentador faz pausas muito longas ou, atropela as próprias palavras.

Na primeira fase do telejornalismo, a produção de um programa de entrevistas foi o grande desafio, fui escolhido o apresentador. Nessa época, foi quando Vinícius se juntou definitivamente ao nosso grupo, nossos temas sempre buscavam se distanciar do comum. Enquanto os demais grupos convidaram jornalistas, optamos por um humorista, Marcelo Beny, o Bananinha do Comando Maluco (não confunda com o filho do presidente). Um programa mais leve, seguindo estilo talk show, um simulado de ao vivo com inserções feitas em tempo real, mas gravado e posteriormente editado, na época estava aprendendo a editar por conta. O maior desafio não foi apresentar o programa, mas o preparo, nada de café, comidas gordurosas ou bebidas geladas, a falta da cafeína acabou me deixando ainda mais nervoso, mas no final, tudo correu bem.

Durante a produção do telejornal, a produção das matérias foram a parte mais simples e divertida, a primeira externa com equipamentos emprestados da faculdade, a curiosidade das pessoas nas ruas, alguns faziam brincadeiras, outros mais curiosos perguntavam sobre a finalidade das filmagens. Ainda faltava um especialista para falar sobre danos do asfalto ruim nos automóveis, em um grupo de Facebook, encontrei um engenheiro que topou conceder a entrevista, uma aventura de trem entre Osasco e Santo André no ABC paulista, tudo pelo jornalismo. 

Toda a montagem do telejornal ficou sob minha responsabilidade, assim como a assistência de direção e operação de teleprompter, nessas horas todo mundo foge, nunca havia operado o equipamento, mas foi simples, apesar do estresse de mais uma vez ter acumulado funções. O maior orgulho é ter entregue o programa editado na data limite, o outro grupo simplesmente não entregou o material.

Do fundo do poço aos céus

Os desafios de lidar com a imagem.
Foto: Debora Antunes
Nem todo trabalho é um sucesso absoluto, a grande reportagem, último grande trabalho com a participação de Debora, no semestre seguinte ela teria que trancar a matrícula por questões financeiras. Escolhemos um tema do qual os quatro membros de rua tinham certa afinidade, pelo menos consumidor, comida de rua. Angela saiu na vantagem por ter cursado mesmo sem concluir gastronomia. 

Durante as primeiras gravações tudo correu bem, mas com o passar dos dias de externas, barulho em excesso, pessoas passando em frente as câmeras e os engraçadinhos atrapalhando as passagens, gravar domingo na Paulista pode ser desafiador. Em uma ocasião, Angela, Debora e eu, fizemos uma enorme jornada, passando o dia na rua, da Paulista direto para Barueri encontrar Vinicius e fazer um contraponto com restaurantes da região de Alphaville.

Gravar durante a noite foi o início da derrocada ladeira abaixo, cenas escuras e problemas no áudio, não fosse isso, ainda errei o nome de uma das entrevistadas no GC. Ainda faltavam imagens e entrevistas para compor a reportagem, mas a greve dos caminhoneiros de 2018, atrapalhou toda a agenda e desenvolvimento do trabalho. Passando a greve, tentamos retirar os equipamentos, mas por ter expirado o prazo, não poderíamos retirar sem uma nova assinatura da professora, não conseguimos, mas o diretor geral, autorizou o empréstimo. Trabalho concluído, a vergonha na hora de passar para a turma, a diferença na iluminação, oscilações no áudio, uma verdadeira tragédia. Só não foi pior porque a professora Carina Martini, apesar de muito rigorosa, reconheceu nosso empenho em tentar produzir uma boa reportagem.

Em paralelo com a grande reportagem, trabalhávamos na produção de um storytelling, outro grande desafio, dessa vez havia a necessidade de ser algo mais artístico e encontrar um bom personagem. Zeus Tristão dos Santos, um jovem que estava prestes a se tornar juiz, descobriu um câncer e decidiu cursar medicina. Uma história fantástica, um trabalho extenso e, na visão do professor um trabalho que careceu de emoção e detalhes de edição. 

Sexto semestre, após uma etapa de tropeços, uma oportunidade de redenção, documentário. Apesar de ser um desafio ainda maior, pesquisa extensa e correria atrás de fontes, o tema foi mais caseiro, resgatar a história da cidade de Osasco. Pauta sendo construída, já estava atrás das fontes, pauta aprovada, entrevistas marcadas, começaram os problemas.

A fonte mais importante, membro da família Agú, que foi responsável por fundar a cidade, teve que cancelar a entrevista, outras fontes não respondiam, a solução foi drástica, Angela e eu, em um dia chuvoso fomos em busca de personagens. TV Osasco, Sindicado dos Comerciários, Junta Comercial, lojas tradicionais, tudo embaixo de chuva atrás de boas histórias sem muito sucesso. 

Uma fonte muito importante não cancelou, Nivaldo Cariatti Junior, meu professor de geografia no ensino médio e grande conhecedor da topografia, população e história osasquence, além, de ser um dos sobreviventes da tragédia do Osasco Plaza Shopping em 1996. No dia da gravação fomos expulsos das dependências da Biblioteca Municipal, da qual na semana seguinte não fomos autorizados a gravar, bem como na prefeitura e câmara de vereadores. Mas nada supera as ameaças sofridas de forma velada por um guarda do Osasco Plaza Shopping e, explicitamente por uma segurança da CPTM, na Estação Osasco, ponto fundamental para o desenvolvimento do vilarejo que viria a se tornar uma das mais importantes cidades do Brasil.

A criatividade de Vinicius, nos levou ao bairro de Quitaúna, nas imediações do colégio Pio X, conseguimos mais duas fontes que contaram um pouco da história deles na cidade. Vale citar a participação de Bruno dos Anjos, um dos fundadores da Osacomedia, página que mistura humor, serviços e resgate da história da cidade. Foram visitados os acervos do Hagop Garagem e Jorge Kalamakian, membros da grande comunidade armênia de Osasco e, responsaveis por presevar mais a história do que o poder público, inclusive o museu municipal está praticamente em ruínas, além de ter sido saqueado ao longo dos anos.

Um trabalho que serviu como a redenção e foi um laboratório para o TCC, mudanças de percurso e, dificuldade em conseguir fontes históricas e oficiais, justificam o título de cidade sem história, mas o trabalho, esse entrou para história com uma bela nota 10. 

Parte I

Parte II

Parte III

Parte V

Um comentário:

  1. Baita dia o da exposição dos carros, e não esqueço do espanhol perguntando do Ganso pra mim hahahahahaha show demais

    ResponderExcluir